O ser humano é um bicho engraçado que não se entende muito bem. E quando digo “se”, quero dizer em ambos os sentidos em que se pode interpretar esse pronome reflexivo: o homem não entende muito bem nem a si mesmo, ou seja, ele não se entende, assim como o homem não entende muito bem o homem, o outro, o alheio, aquele si-outro-ali alheio a si-mesmo. Ou seja, não entendemos bem nem a nós mesmos enquanto indivíduos, nem muito menos aquele bom samaritano que faz o bem a um necessitado, a alguém que carece de ajuda, o tal do outro.
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Outra coisa que parece causar confusão ao homem, ao ser humano, são as línguas. Não bastasse tua incompreensão de teu coração, de teu ego, do que se passa em teu íntimo, quando passamos de nossa língua-mãe (L1) para uma língua-alvo (L2… L3, L4, L5?) aí a multiplicação de confusões e a dispersão de incompreensões reinam quase que absolutas, se é que não absolutamente. E também, devo acrescentar, não faria sentido a vida acadêmica não fosse a multiplicação e a dispersão na necessidade sempre premente de publicar. Porque ou você publica ou perece, diz o ditado anglófono. E nessa necessidade infinita de publicar, nessa máquina de produção de revistas, journals, e what-nots, people knot everything down, todos os nós são nós cegos que se sucedem uns aos outros, na geração de “novos” argumentos e refutação ou recuperação de “velhos” argumentos. Porque se eu não tenho algo de novo a dizer, se eu não tenho contribuição original a fazer, pelo menos posso argumentar que uma velha maneira de argumentar, ou um velho argumento, estavam corretos. E essa passa a ser a minha originalidade, ou seja, a de recuperar o que era considerado batido: o passo adiante na pesquisa científica e acadêmica sendo um ou dois passos atrás; e isto agora passa por novo ou por novidade, como se fosse um renascimento ou um “reflorescimento”.
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Meu ponto, porém, não é sociológico, nem exatamente crítico. Eu só queria mesmo era pensar no que se quer dizer com uma expressãozinha latina, “transcendens” — e, sim, eu pronuncio /transquendens/.
Bem, “os” transcendens talvez não sejam muito bem entendidos se dizemos “transcendentais”. Mas talvez também não sejam muito bem compreendidos se dizemos “transcendentes”.
Então como diabos entendemos “transcendens”?
Talvez, e esta é só uma hipótese de trabalho, por assim dizer, devêssemos entender esse bendito particípio nominalizado não como um substantivo. Talvez quando falamos, em filosofia medieval tardia, aquela da Baixa Idade Média, vá entender, devamos entender o Bem, a Verdade, o Uno, e tudo o mais, como noções, e não conceitos, nem coisas. Não se precisa coisificar coisa nenhuma.
Uma noção é como o “grasp” em inglês. Ter uma noção, ou ter noção, não é o mesmo que ter conhecimento de algo. Implica um certo respeito, digamos, e um respeito a algo que não entendemos muito bem. Um conceito já parece algo mais sério, mais bem formado. Uma noção é só um “grasp”, um arranhar. E um arranhar traz um certo cheiro de incompletude, de imperfeição, e de humildade. É como que um ato incompleto, ou como o foto-instantâneo ou a fotografia de uma ação que começava, começou, mas que não vimos terminar, não vimos completa e a termo. Não sabemos desse “arranhão”, que, por sua vez, seria o conceito já formado de algo. Mas, bem, não estou preocupado com conceitos aqui. De certa forma, pode-se dizer que conceitos já nasceram, ou, se ainda não nasceram, pelo menos a gravidez está consumada. Já a “noção” é prévia à gravidez. É como foreplay no playground anterior à consumação não do ato, da cópula, mas do que às vezes dela decorre, o zigoto. A noção, assim, não é ainda a concepção, mas faz parte do processo de conceber. E, não, minha terminologia aqui não é exata. E a culpa pela falta de clareza é mais propriamente humana, e por todos partilhada, do que um pecado original meu. Sempre que se quer dizer algo ou expressar algo que não seja trivial, nem ainda objeto de uma pedagogia, de algo a ser ensinado, por Deus, cai-se num certo emaranhado.
Mas sigamos. Minha proposta é que quando dizemos “Bem”, “Verdade”, “Belo”, “Uno”, etc., estejamos falando sobre noções que transcendem. Assim mesmo, transcender como verbo intransitivo. Não quero saber nesse momento a que transcendem, se é que a algo transcendem essas tais noções. Só quero dizer que esse particípio tomado como substantivo, ou nominalizado, poderia talvez ser entendido simplesmente como noção que transcende. Ou noções que transcendem.
E que ganho se tem com esse tipo de exercício?
Sugiro que o ganho seja não pensar em velhas noções cristalizadas como “transcendentais”, ou novas noções como “transcendentes”.
Pensar no uno, no bem e no belo como noções que transcendem, ou vá lá, como noções transcendentes talvez traga o ganho de se pensar, sim, em algo que está além ou para além, mas que, caboclo meu, é só uma metáfora espacial e não algo que metafisicamente transcenda este mundinho cá nosso. Mesmo porque carne e osso também são metáforas ou abstrações.
Quando o digo, você não está aí concretamente com um token ou exemplar concreto do type ou da Ideia platônica de carne e osso.
Você está sim justamente com o type ou a Ideia platônica de carne e osso em mente.
Porque tudo é um aparecer e uma percepção de carne e osso formulada numa língua natural que faz parte do fenômeno da linguagem. Porque não há como fugir da percepção e da linguagem.
Mesmo a percepção, dela só podemos falar ou pensar por meio da linguagem. E mesmo a linguagem, repito-me, é uma formatação ou talvez até pré-formatação da percepção. (É quase como se o De Interpretatione de Aristóteles remetesse textualmente ao De Anima. E não é um quase, porque logo no início o primeiro menciona diretamente o segundo.)
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Não há conceito de percepção fora da linguagem. E tudo que postulamos como extralinguístico é ainda linguístico, simplesmente porque a realidade foi soprada pelo λόγος. E, nesse sentido, tudo é “lógico”, tudo é “analógico” (como uma regra de três), tudo é racional e divisível, menos o 0 (zero), mas essa é uma intervenção hindu ou ariana em nosso sistema numérico otherwise arábico.
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No mais, uma “existência” independente da linguagem, independente da percepção, etc., é só uma burrice que não se apercebeu ainda da interconexão de um só e mesmo todo.
Bastaria entender a divisão interna na categoria aristotélica do número, entre o discreto e o contínuo, e se perceberia que o todo e a parte ou as partes são só duas maneiras de enxergar (ou de dizer) o mesmo busílis, o mesmo é da coisa, como diria nosso pseudo-filósofo Reinaldo de Azevedo, que faz jornalismo como um lat(r)inista.